O adeus, o aborto..

Faz hoje um ano...

Faz um ano em que eu e o meu marido acordámos de manhã cedo, corremos descabelados para a casa de banho, fizemos o teste e apareceu ....grávida. Foi um dos dias mais felizes da minha vida.

 Mas os meses que se seguiram não foram de felicidade pura, como eu pensava que iam ser. Tive perdas de sangue o tempo inteiro. Ao inicio eram muito leves mas um belo dia de manhã tive uma sensação estranha, senti o útero pesado como se fosse menstruar, não liguei, deitei-me novamente (estava de folga nesse dia e ainda bem). Quando estava deitada senti como que uma rajada quente a descer por entre as pernas, sangue, muito sangue...liguei ao meu marido em pânico, senti-me sem forças, a desmaiar, ele veio logo. Liguei para o centro de saúde, fomos lá e a médica foi displicente : "que era normal haver perdas de sangue"; não ficámos descansados e fomos fazer uma ecografia numa clínica privada. Durante a ecografia mais um momento marcante: vimos o coração a bater; o meu marido feliz, emocionado mas eu não. Ele dizia-me: "relaxa, aproveita a gravidez"; mas eu não conseguia, não consegui, tive sempre uma preocupação avassaladora e constante.

Sempre pensei que ia desfrutar de paz, felicidade e contentamento quando obtivesse o positivo mas não aconteceu. Não consegui ligar-me ao meu filho, conectar-me a ele, tinha medo, medo de o perder, medo da dor da perda, não queria afeiçoar-me demasiado e depois perdê-lo. No fim fiquei com o sentimento de perda a somar ao sentimento de culpa.
Culpa por não ter aproveitado, culpa por não me ter ligado emocionalmente ao bebé, culpa por ter feito esforços no trabalho. Por ter deixado que a minha chefe primeiro contasse a todos os meus colegas que estava grávida quando lhe pedi que não o fizesse logo, depois insensível sobrecarregou-me com trabalho quando lhe tinha pedido razoabilidade. Foi cruel, insensível e eu deixei, eu não protegi o meu filho da sua primeira bullie. Ela é uma mulher com um filho mas com infertilidade secundária há mais de 11 anos, ela é amarga e eu não quero ser assim, não quero tornar-me nesse tipo de monstro, mesmo que não venha a ter filhos biológicos. Ela também estava preocupada com o facto de vir a perder um trabalhador durante muito tempo (licença de maternidade) foi má e egoísta, eu deixei. Muito embora depois daquela ecografia eu tenha ficado de baixa senti que já não fui a tempo, a tempo de minimizar o stress do trabalho, o stress de trabalhar num ambiente stressante, onde passo muitas horas de pé e onde faço muitos esforços físicos. Após o aborto e a minha  baixa a minha chefe e o seu chefe, desconfiados, fizeram uma reunião para saber o que se tinha passado (mesmo com os atestados a dizer o que tinha sucedido) quiseram saber pormenores, eu fragilizada cedi mas não devia, não é humano, nem sei se será legal. Tive de reviver o aborto, a minha perda com pessoas que não queria. Quero mudar de trabalho, não quero mais insensibilidade e culpa. Quero fazer cumprir o meu papel de mãe e proteger os meus filhos se tiver a sorte de engravidar novamente.

Às 8 semanas veio a noticia: o bebé não tinha batimentos cardíacos. Eu parti-lhe o coração! A sua mãe partiu-lhe o coração porque não se afeiçoou a ele como devia, porque não o protegeu, ele não se sentiu amado. Mas foi...se foi!

Aborto retido. O que é o mesmo que dizer que não saiu por si. Teve de sair com o auxilio de medicamentos. Assim que os coloquei na vagina comecei e tremer da cabeça aos pés, depois levantei-me para ir ao wc e senti algo pesado a cair...corri, sangue, muito sangue e uma bola gigante de carne, o meu marido ficou encarregue pelo médico de ver se estavam nessa bola de carne os restos do bebé...estavam, saiu tudo. Eu sentada na sanita com dores indescritíveis, sobretudo dores da alma. Fiquei anémica! Não só devido à perda de sangue mas também devido à perda na minha alma. Perdi uma parte de mim ali...

Nos dois meses seguintes reprimi os meus sentimentos de dor e o meu marido queixou-se da minha indiferença em relação ao que se passou, mas passado uns 4 meses comecei a sentir-me estranha.  Foi das sensações mais horríveis que senti até hoje: olhava -me ao espelho e não me reconhecia, parecia uma estranha que ali aparecia reflectida, o ambiente à minha volta, as pessoas pareciam-me irreais, saídas de um sonho ou como se estivesse a ver o mundo debaixo de água. Sensação que mais tarde vim a saber designar-se em psiquiatria como desrealização/despersonalização, é basicamente um mecanismo de defesa activado quando a dor é muita e o cérebro diz basta! Então desconecta-se da realidade dolorosa. É estranho. Sentia-me desligada e ao mesmo tempo a enlouquecer. Assustei-me com estes sentimentos e tive ataques de pânico, achei que era permanente. Em casa chorava desalmadamente, um sentimento de angustia, desespero e dor como nunca senti. Depois vieram os pensamentos de morte, muita morte, queria morrer mas ao mesmo tempo não queria. O futuro não existia, não havia esperança. Foi o lugar mais solitário, triste, escuro e de certa forma egoísta que a minha alma já visitou.  Depois de procurar ajuda tornou-se oficial: estava com uma depressão. A medicação fazia sentir-me pior, não quis tomar. Mais tempo de baixa.

Mas a cada dia, a cada sessão de terapia sentia-me mais humana. O amor de estranhos como a minha terapeuta salvou-me, o sorriso do senhor dos correios salvou-me, a net e a generosidade das pessoas que se expõe na net salvaram-me. O meu marido também me salvou. Foram todos lá.... resgatar-me desse sítio escuro onde só habita a dor, a morte, a ausência, o vazio.

Fez um ano, mas já não sou a mesma sendo à mesma eu! Sinto medo! Não há dia que não sinta medo de não vir a ser mãe, de não vir a ter filhos meus e dele. De não me ver reflectida nesses frutos. Medo de perder o meu "eu"criança para sempre porque posso nunca vir ter filhos. É como se o meu "eu" criança e traquinas (fui muito traquinas) nunca mais pudesse renascer e viver de novo através do meus filhos, ficasse sepultado no meu passado. Mas cada testemunho generoso relatado no youtube ou em blogs, de outras que como eu passaram pelo mesmo, faz-me ter uma faísca de esperança, faz-me não desistir e continuar.a lutar De tantas coisas más que a Internet possa ter, também tem muitas coisas boas e maravilhosas e esta partilha, esta generosidade em partilhar a dor, a luta e a alegria, é uma delas.

Estou de momento à espera do período, mas mais vorazmente à tua espera.


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